Brasileiros e europeus buscam o controle da fusão nuclear
(Pesquisa Fapesp) Cinco décadas atrás as revistas populares de ciência nos Estados Unidos alardeavam que, em menos de 50 anos, a fonte da eletricidade do mundo seria a energia limpa e praticamente inesgotável que faz as estrelas brilharem: a fusão nuclear. O tempo passou e hoje existem apenas as usinas de fissão nuclear, que produzem energia a partir da quebra de núcleos atômicos pesados. Uma usina de fusão, ao contrário, funcionaria extraindo energia da união de dois núcleos de hidrogênio, o elemento químico mais abundante no Universo. Em parceria com grupos europeus, pesquisadores brasileiros trabalham com o objetivo de transformar a fusão em realidade.
A fusão ocorre nas estrelas quando os núcleos de hidrogênio, na forma de gás, são comprimidos pela gravidade atingindo temperaturas de milhões de graus. Para fazer o mesmo na Terra, porém, é preciso confinar esse gás eletricamente carregado (plasma) usando campos magnéticos gerados por máquinas chamadas tokamaks e aquecê-lo. Aqui, o combustível dos reatores seriam duas variantes do hidrogênio: o deutério, que pode ser extraído da água do mar; e o trítio, produzido a partir de núcleos de lítio, cujas reservas no planeta garantiriam o funcionamento das usinas por milhões de anos (ver infográfico abaixo)
Tudo soa tão parecido com ficção científica que é com certa suspeita que se escutam pesquisadores fazerem a mesma afirmação do passado, de que a primeira usina de fusão funcionará em 50 anos. Dessa vez, porém, a chance de a ideia se concretizar é maior. Desde a invenção do tokamak pelos soviéticos nos anos 1960, o desempenho dessas máquinas melhorou 10 mil vezes. Em 1991, o maior tokamak em atividade até hoje – o Toro Europeu Conjunto (JET), instalado em Culham, no Reino Unido – conseguiu a primeira reação de fusão nuclear controlada da história. O problema foi que a experiência consumiu mais energia do que gerou.
Os físicos acreditam hoje que é preciso aprimorar 10 vezes mais a eficiência dos tokamaks – há outros tipos de equipamentos para aprisionar plasma, mas nenhum tão eficaz – para que se alcance o ponto em que a quantidade de energia liberada nas reações de fusão seja maior que a consumida. Esse é o objetivo do Reator Experimental Termonuclear Internacional (Iter), em construção desde 2007 em Cadarache, na França. O consórcio responsável pelo projeto, formado por União Europeia, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, Índia e Japão, calcula gastar na montagem desse tokamak US$ 13 bilhões, mais que o consumido na criação do LHC, o maior acelerador de partículas do mundo.
O Iter terá 61 metros de altura e o peso de três torres Eiffel. Comportará um volume de plasma oito vezes maior que o JET e, ao ficar pronto em 2019, deverá gerar 500 megawatts de potência, gastando apenas 50 megawatts. Correndo tudo bem com o Iter, os otimistas contam com a inauguração da primeira usina experimental de fusão, batizada de Demo (de demonstração), em 2040. “Essa é a perspectiva dos otimistas; para os pessimistas, a produção de energia por fusão nuclear é inatingível”, diz o físico Ricardo Viana, da Universidade Federal do Paraná, reconhecendo que não será fácil conseguir esse incremento final no desempenho dos tokamaks.
Em janeiro deste ano, ele e cinco colegas deram uma pequena contribuição ao desafio. Publicaram na revista Philosophical Transactions of The Royal Society A um estudo no qual calcularam como as partículas do plasma se comportam próximo à parede da câmara de um tokamak e escapam à armadilha magnética que as aprisiona, atingindo alguns pontos da parede com mais frequência que outros. O impacto das partículas eletricamente carregadas acelera o desgaste da parede e prejudica o funcionamento da máquina.
O trabalho de Viana e colaboradores foi um dos que esclareceu o fenômeno, descoberto há cinco anos em tokamaks na Europa e nos Estados Unidos, e que permitiu propor uma solução ao problema. Usando o tokamak da Universidade de São Paulo (USP), o físico Ivan Nascimento e colegas mostraram que é possível atenuar esse vazamento com o auxílio de campos elétricos.
Aumentar o controle sobre o plasma é o principal desafio nos tokamaks. Longe de fluir suavemente à medida que dá voltas dentro dessas máquinas, o plasma se comporta como o mar revolto por uma tormenta. Seu movimento é turbulento, em especial na borda da região de confinamento, onde a densidade, a temperatura e os campos eletromagnéticos que o mantêm aprisionado flutuam muito. A turbulência é tal que sempre se descobrem novas maneiras pelas quais o plasma pode escapar e resfriar. Até hoje o tempo máximo que se manteve o plasma sem perder energia não passa de frações de segundos.
Iberê Caldas, físico da USP e coautor do artigo assinado por Viana, dá um exemplo de uma solução recente para o escape do plasma. No desenvolvimento do Iter, pesquisadores norte-americanos descobriram como controlar um fenômeno capaz de provocar explosões violentas de plasma, semelhantes às erupções na superfície do Sol, que poderiam danificar o reator.
A solução foi modificar o desenho do Iter e incluir geradores de campos magnéticos caóticos que, pelos cálculos dos físicos, impedirão o surgimento das erupções. “A alteração custará mais de € 100 milhões e provocou o adiamento de mais de um ano no projeto”, diz Caldas. Ele, Nascimento, Viana e mais 130 pesquisadores de 15 instituições brasileiras participam atualmente da Rede Nacional de Fusão (RNF), organização criada em 2006 pelo fí-sico Sérgio Rezende, então ministro da Ciên-cia e Tecnologia, e que começa agora a amadurecer. Outro físico, Ricardo Galvão, coordenador técnico-científico da RNF e diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, conta que a ideia de criar a rede surgiu depois que uma comissão de pesquisadores europeus visitou o Brasil e avaliou o potencial do país de contribuir com o Iter.
A comissão identificou que, embora exista no país uma produção científica relevante em física de plasma, faltava coordenação de esforços. Cada grupo de pesquisa realizava seu trabalho independentemente dos outros, na forma de projetos de curta duração. “Para trabalhar em um projeto internacional desse porte é preciso ter um comprometimento de cinco, 10 anos, e ter capacidade de construir equipamentos aqui [no Brasil] para colocar lá fora [no Iter]”, diz Galvão, que integra a equipe do Laboratório de Física de Plasma da USP.
A rede funciona com verba da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que aprovou em 2010 um pouco mais de R$ 1 milhão para seus projetos de pesquisa. Alguns desses estudos envolvem colaborações com laboratórios europeus, estabelecidas por meio de convênio firmado em 2009 entre o Brasil e a Comunidade Europeia de Energia Atômica. Embora já esteja em vigor, o acordo aguarda ratificação do Congresso Nacional.
Em parceria com pesquisadores alemães, engenheiros brasileiros – entre eles Hugo Sandim, da Escola de Engenharia de Lorena, e Angelo Padilha, da Escola Politécnica, ambas da USP – trabalham na caracterização dos materiais a serem usados nas paredes da câmara de plasma do Demo, reator da geração posterior ao Iter. Feito com uma família de aços chamada Eurofer, o material precisa suportar a proximidade de um plasma com temperatura de 150 milhões de graus (10 vezes a do interior do Sol), além do bombardeamento de nêutrons altamente energéticos e as eventuais descargas de plasma.
Os pesquisadores já sabem, porém, que o aço não pode ficar exposto ao plasma. Há o risco de que núcleos pesados do metal acabem em seu interior, o que pode desestabilizar os campos magnéticos no tokamak e destruir o confinamento de modo que toda a corrente elétrica do plasma – 100 vezes maior que a de um raio em uma tempestade – atinja de uma só vez um ponto da parede. Para evitar o estrago, especialistas desenvolveram um revestimento de ladrilhos de berílio, átomo leve o suficiente para não interferir no plasma e ao mesmo tempo resistente o bastante para suportar os nêutrons e as temperaturas altas.
O revestimento deve começar a ser testado no JET a partir de setembro e contará com contribuição brasileira. Nos testes, uma câmera ultrarrápida de infravermelho observará o desgaste dos ladrilhos. Mas a radiação infravermelha próxima à parede é tamanha que Galvão compara a tarefa com a de observar um objeto minúsculo passando na frente do Sol. Para analisar as imagens em tempo real, os pesquisadores do JET usarão um programa de computador desenvolvido pelos irmãos Marcelo e Márcio Albuquerque, do CBPF.
Ondas Alfvén - Outro projeto brasileiro no JET pretende estudar mais um fenômeno capaz de frustrar os planos do Iter. Os físicos esperam que os núcleos de hélio formados na fusão permaneçam no plasma, colidindo com elétrons e outros núcleos. Assim, eles ajudariam a aquecer o plasma e a sustentar as condições para mais reações de fusão. O hélio, porém, excita ondas eletromagnéticas no plasma – as chamadas ondas Alfvén – que, dependendo de sua duração, podem expelir o hélio e interromper a fusão.
Pesquisadores da USP e colegas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos, e da Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça, planejam montar no JET até dezembro um sistema de excitação e detecção de ondas Alfvén, para medir com que rapidez elas desaparecem. “Eles obtiveram um tremendo progresso”, conta Patrick Blanchard, coordenador científico do JET, sobre o melhoramento que os engenheiros da USP realizaram nas antenas que geram ondas Alfvén. “Teria sido difícil sem eles.”
Esse convênio internacional também permitiu a europeus virem ao Brasil. Embora máquinas menores que o JET e o Iter não atinjam as condições de fusão, os três tokamaks brasileiros – um instalado na USP, outro na Universidade Estadual de Campinas e um terceiro no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) – contribuem com estudos da turbulência do plasma. Pesquisadores da USP e do Instituto Superior Técnico de Lisboa, por exemplo, criaram sistemas para medir a turbulência no tokamak da USP.
Rede nacional - Além da oficialização do convênio com os europeus, os membros da RNF aguardam a criação de um novo centro de pesquisa: o Laboratório Nacional de Fusão (LNF), filiado à Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), a ser construído em Cachoeira Paulista, no interior de São Paulo.
Há, no entanto, um impasse burocrático para a criação do laboratório. As assessorias jurídicas das instituições envolvidas ainda não se entenderam quanto à necessidade de submeter ao Congresso Nacional a decisão de criar o LNF. Edson Del Bosco, físico do Laboratório Associado de Plasma do Inpe, aguarda ansioso o início das obras, ainda sem previsão. Ele espera que o LNF atue como catalisador de recursos e de pessoal, dando fôlego novo a grupos de pesquisa pequenos como o seu e a outros que se associariam ao laboratório. “Se o LNF não for criado, não tem como a gente progredir”, diz.
Del Bosco e Galvão esperam que o problema se resolva já no início do mandato do novo presidente da Cnen, o engenheiro Angelo Padilha, que é membro da RNF e foi empossado no último dia 7 de julho. Padilha afirma ser uma de suas prioridades na Cnen criar o LNF. Segundo Galvão, o plano é iniciar as atividades do LNF fazendo melhorias no tokamak do Inpe. Alguns membros da RNF cogitam mais tarde comprar ou construir um tokamak maior, enquanto outros, como Galvão, acreditam não valer a pena pelo alto custo. “Se houver interação forte com os europeus e acesso às máquinas deles, será melhor ter um tokamak pequeno para treinar pessoal e usar o laboratório para construir equipamentos que instalaríamos nos laboratórios deles”, diz.
Em um ponto os membros da RNF concordam: a fusão é um investimento de longo prazo do qual o Brasil não pode abrir mão. Afinal, não se sabe quais serão as demandas energéticas do país em 2100. “Precisamos dominar a tecnologia e o conhecimento científico para não termos de comprar um reator no futuro”, diz Galvão. “Se a fusão nuclear funcionar, o consórcio do Iter será o dono da energia do mundo.”
quinta-feira, 11 de agosto de 2011
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário