Mecanismo alternativo pode explicar a formação de estrelas de nêutrons maiores que o normal
(Pesquisa Fapesp) Imagine pegar o Sol inteiro e compactá-lo até que ele fique do tamanho de uma cidade. Radical? Pode até ser, mas a natureza vive fazendo esse mesmíssimo experimento quando cria as chamadas estrelas de nêutrons, um dos menores e mais densos objetos do Universo. Os astrônomos sabem mais ou menos como isso acontece, mas são poucos os que admitem que falta muito para a ciência explicar o que se vê lá fora. Um dos mistérios a serem esclarecidos é como surgem estrelas de nêutrons com massa mais elevada do que o previsto pela teoria da formação e evolução estelar. Um grupo de pesquisadores atuando no Brasil tenta trazer alguma luz para o assunto resgatando uma hipótese controversa. Em linhas gerais, eles sugerem que deve haver mais de um jeito de criar estrelas de nêutrons.
O surgimento delas tem a ver com a morte de estrelas de massa bastante elevada, pelo menos oito vezes superior à do Sol. Para compreender o que acontece, primeiro é preciso dar duas palavrinhas sobre o que os astrônomos sabem de como vivem e morrem as estrelas. Constituídas por gás (em sua maioria hidrogênio) e poeira concentrados, as estrelas começam a brilhar quando a concentração de matéria é tal que os átomos na região mais central desses corpos celestes começam a se unir, processo conhecido como fusão nuclear (ver A energia das estrelas). A transformação de dois núcleos de hidrogênio, cada um com um próton, em um núcleo de hélio, com dois prótons, é acompanhada de uma sutil redução da massa total. Parte da massa é convertida em energia e escapa da estrela – é daí que vem todo o poder desses astros para banhar um sistema planetário inteiro em radiação. Essa energia gerada no interior da estrela compensa a força gravitacional, que atua no sentido oposto. Por causa desse equilíbrio, a estrela permanece com aproximadamente o mesmo tamanho ao longo da maior parte da sua vida.
Porém, durante milhões de anos, o combustível disponível para a fusão nuclear vai se esgotando. Na falta de hidrogênio, são usados elementos mais pesados, como hélio, carbono, oxigênio, até chegar a um limite: o ferro. Essa é a fronteira final por uma razão simples: a fusão de núcleos de ferro consome mais energia do que a liberada ao final do processo. Nesse estágio, a produção de energia na região central é interrompida e a gravidade passa a trabalhar desimpedida, sem nenhuma força para compensar sua ação.
Bomba cósmica – A estrela entra em colapso e dispara uma complicada sequência de eventos. O resultado final é a explosão das camadas mais externas da estrela, na qual 90% de sua massa é lançada ao espaço. O que resta desse violento episódio, conhecido como supernova, é um caroço estelar muito compacto. Se a massa do caroço for relativamente pequena, essa compressão origina o que se convencionou chamar de estrela de nêutrons – caso a massa seja mais elevada e a compressão continue, forma-se um buraco negro, objeto tão denso que nada escapa de sua atração, nem mesmo a luz.
Segundo a teoria atualmente aceita, as estrelas de nêutrons, assim chamadas por apresentarem proporções elevadas de partículas sem carga elétrica (nêutrons) em seu interior, deveriam ter todas as mesmas dimensões: uma massa cerca de 40% maior do que a do Sol, comprimida em uma esfera de menos de 20 quilômetros de diâmetro.
“Mas ninguém sabe exatamente qual é a massa que uma estrela precisa ter em vida para morrer e deixar uma estrela de nêutrons ou um buraco negro”, conta o astrônomo Jorge Horvath, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo, coordenador de um grupo que investiga as características das estrelas de nêutrons.
“Até recentemente acreditava-se que todas as estrelas de nêutrons tivessem esse padrão”, afirma João Steiner, outro astrônomo do IAG. “Mas no ano passado foi descoberto um caso que é claramente maior.”
O nome do objeto? PSR J1614-223, uma estrela de nêutrons situada a 3 mil anos-luz da Terra, descoberta por um grupo do Observatório Nacional de Radioastronomia (NRAO), nos Estados Unidos. Apresentada em artigo publicado na Nature, essa estrela parece ter duas massas solares – um mamute, em se tratando de objetos desse tipo.
Esse achado obrigou a comunidade astronômica a aceitar o fato de que há variação significativa no tamanho das estrelas de nêutrons. E se encaixa muito bem nas previsões feitas recentemente pelo grupo de Horvath, publicadas na edição de junho da revista Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. Nesse trabalho, Horvath, Eraldo Rangel e Rodolfo Valentim conduziram uma análise estatística da massa de 55 estrelas de nêutrons bem estudadas e mostraram que há dois padrões mais comuns: um formado pelas estrelas de massa menor (ao redor de 1,37 vez a do Sol) e com pouca variação, como esperado; e outro, com massa maior, cerca de 1,73 massa solar, e mais variável.
Por que existem esses dois grupos distintos? “Os resultados apontam para mais de um mecanismo de formação das estrelas de nêutrons”, afirma Horvath.
Essa ideia parece compatível com as distribuições de estrelas de nêutrons em locais como os aglomerados globulares, habitados principalmente por estrelas muito velhas e de massa menor do que aquela que, segundo a teoria, seria necessária para originar estrelas de nêutrons. Observações recentes feitas por astrônomos de diversos países vêm mostrando que nessas regiões há muito mais estrelas de nêutrons do que se esperaria se elas fossem produto exclusivo da explosão de estrelas de alta massa.
As estrelas que originalmente têm massa inferior a oito vezes a solar, ao entrar em colapso, não geram estrelas de nêutrons, mas outra classe de objetos: as anãs brancas, com a massa de um sol comprimida em um volume igual ao da Terra – é como o Sol deve terminar seus dias. Em alguns sistemas binários, a anã branca, por ação da gravidade, rouba a massa de sua estrela companheira até atingir um limite que a induza a um novo colapso. Esse evento é explosivo e produz um tipo específico de supernova, chamada Ia, na qual a massa total da estrela é lançada violentamente para o espaço.
Mas alguns astrônomos sugerem que isso pode acontecer de modo diferente. Em vez de resultar em uma supernova, o acréscimo rápido de massa faria com que a anã branca se transformasse em estrela de nêutrons. “É uma ideia que nos ronda há 20 anos e tem quem a odeie”, diz Horvath. “Mas há também quem diga que funciona. É difícil imaginar uma alternativa melhor para explicar como certas estrelas de nêutrons foram parar onde estão.”
Dados recentes complicam o cenário ao indicar que existem estrelas de nêutrons com massa inferior à do Sol, que não se formariam por colapso.
A resposta definitiva ainda não apareceu, mas é quase certo que o futuro das pesquisas passará por reformulações nas teorias de como surgem e se comportam as estrelas de nêutrons.
Por fora e por dentro – Se há mistérios sobre o tamanho e a massa, a coisa não fica mais simples quando o assunto é a composição das estrelas de nêutrons. O nível de compactação desses objetos é tão elevado – a densidade de uma estrela de nêutrons é maior que a do núcleo dos átomos e 100 trilhões de vezes a da água – que a matéria pode aparecer sob formas que não se encontram em nenhum outro lugar do Universo.
A densidades maiores que a do núcleo atômico, partículas como prótons e nêutrons se desfazem em suas unidades fundamentais: os quarks, que, via de regra, nunca são vistos sozinhos. É difícil conciliar essas previsões com as observações, mas se acredita que essas condições existam em certas estrelas de nêutrons, que abrigariam em sua região central uma sopa de quarks.
Na Universidade Federal do ABC, em Santo André, Região Metropolitana de São Paulo, o grupo de Germán Lugones vem fazendo cálculos e simulações de como diferentes composições internas desses astros afetariam a massa, o raio, a evolução e outras propriedades. Um dos resultados a que a equipe chegou é que certos fenômenos que surgem quando a matéria se encontra na forma de quarks – como a transição a um estado supercondutor – explicam naturalmente a existência de estrelas com massas bem maiores que a clássica 1,4 massa solar. Por isso, a descoberta da PSR J1614-223 representou um sinal importante de que podem estar no caminho certo. Lugones acredita que uma versão mais radical das estrelas de quarks – a estrela estranha ou estrela de quarks autoligada, em que todo o astro seria composto por essas partículas – deve ser considerada como candidata caso se observem estrelas com massa ainda maior que a da PSR J1614-223.
“De acordo com estudos teóricos feitos nos últimos anos por nosso grupo, a densidade necessária para que as partículas da matéria se desfaçam em quarks é de 5 a 10 vezes maior que a densidade do interior de um núcleo atômico”, afirma Lugones, ressaltando que essas densidades podem perfeitamente ser atingidas no centro das estrelas de nêutrons de maior massa.
Se isso ocorre, ninguém sabe. Ainda há lacunas, tanto no entendimento da física por trás desses processos como no das propriedades observáveis das estrelas de nêutrons. Manuel Malheiro, pesquisador do Instituto Tecnológico da Aeronáutica e colaborador de Horvath e Lugones, encontra-se desde 2010 na Universidade de Roma onde investiga a composição e outras características de outro tipo especial de estrelas de nêutrons: as magnetares, que têm elevado campo magnético.
Ainda serão necessários avanços na teoria e nas observações para que eventualmente se chegue a um quadro mais coeso. A única certeza é que há problemas interessantes a respeito desses astros, que, acidentalmente, são laboratórios ideais para o estudo das mais extremas propriedades da matéria.
sexta-feira, 12 de agosto de 2011
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário